RASTROS DE INTOLERÂNCIA, UM SUICÍDIO ANUNCIADO
POR JOEL MARINHO
Passava das dez e trinta da manhã, a escola Clístene Rockfeller, situada em uma zona periférica da cidade de Urubaiana, encontrava-se com a porta da biblioteca aberta. George Branches, de apenas onze anos, adentrou e chamou dona Crisanete, pessoa responsável por atender a demanda de alunos. Como ninguém respondeu, o adolescente foi até a estante, pegou um livro de geografia e começou folhear e ler as partes que mais o interessavam, observando cada mapa e figura.
Georges Branches era um garoto recém chegado da Colômbia e, pelas dificuldades de adaptação de idioma e fisionomia, era sempre colocado às margens de tudo o que acontecia na escola. A biblioteca parecia o lugar mais aconchegante e seguro para o menino, por isso, ele passava horas ali quando, por algum motivo, um dos professores faltava.
Em seu devaneio de estudos sobre os polos norte e sul da terra, não percebeu um grupo de aluno que sorrateiramente entraram na biblioteca e começaram a fazer muitas gracinhas sobre o seu jeito de ser e seu idoma, algo que já se tornara corriqueiro para ele, menos ali, na biblioteca, mas dona Crisanete não estava naquele dia, parecia ser um dos seus únicos anjos da guarda naquela escola, não se via protegido nem mesmo pelos professores em sala de aula.
Georges tentou sair rápido dali, abandonando o livro em cima da mesa, mas era tarde e, pela primeira vez, sofreu, de fato, a dor física. Um dos adolescentes acertou-lhe um soco no queixo, enquanto vários o seguravam por trás. Sentiu o mundo “rodar” e, ao ser solto, caiu por cima de uns livros amontoados no chão à espera de serem catalogados e postos na estante. Desmaiou ali.
Foi acordado por uma voz que chamava seu nome, era dona Crisanete, que segurava seu braço e o colocava em uma posição mais confortável em uma mesa.
A escola foi acionada para saber quem havia cometido aquela atrocidade e ninguém se manifestava. Georges não quis denunciar seus agressores por medo de represálias ainda maior.
Nos dias seguintes, Georges evitou ir à escola, a dor era insuportável, o nariz já estava sarando, porém sua alegria de viver ficara muito abalada. Seus pais foram à escola e procuraram ajuda, reuniões com pais foram feitas, mas nenhum/a psicólogo/a havia para atender a demanda do menino. Boatos logo se espalharam que aquilo era “frescura” e, em poucos dias, a própria escola esqueceu tamanha violência, menos Georges e os próprios agressores, que estavam procurando outra chance para atacá-lo novamente.
Os ataques físicos e com piadas de mau gosto continuaram acontecendo de vez em quando, na hora da merenda. Foram o suficiente para Georges tomar uma drástica solução, pegar uma arma que tinha seu pai para organizar um ataque e matar todos os que faziam atrocidades com ele.
Naquela trágica sexta-feira, Georges se preparou, pegou a arma e colocou na mochila. Antes de sair abraçou seus pais, que se preparavam para ir trabalhar, foi até a mãe e deu um abraço tão forte, diferente daqueles abraços que era acostumado a dar. Olhou nos olhos da mãe de uma forma amorosa e disse: "te amo e te amarei com todas as minhas forças por toda a eternidade". Deu um sorriso e foi embora para a escola.
Na hora da merenda, foi para a biblioteca esperar seus desafetos, pois sabia que eles estavam querendo essa oportunidade e ele já havia percebido a ausência de dona Crisanete nesse dia.
Pegou um livro de Machado de Assis e começou a folhear, mas antes havia deixado o zíper da mochila aberta, aguardando a hora de agir.
Como se tivessem combinado, naquele dia, ninguém o perseguiu. Diante da situação de mais um trauma Georges, meteu a mão na mochila, pegou a arma e começaram a vir milhares de pensamentos, entre eles as vozes daqueles garotos dizendo que "não era nada". As vozes foram aumentando e, em meio a tanto deboche, havia uma voz que dizia: “te mata, seu frouxo, nem pra se matar tem coragem”!
Um grande impulso saltou em sua mão direita que apontou o cano da arma à sua cabeça e soou o estampido, powww!
Gritos e correrias tomaram de assalto a todos que estavam por perto, sem saber o que aconteceu.
Quando dona Crisanete adentrou e viu a cena cambaleou e caiu desmaiada, aquele menino não merecia morrer, era apenas uma criança assustada que tinha curiosidade em descobrir o mundo através da leitura, talvez o que mais visitara aquele ambiente e leu tanto em tão pouco tempo.
De repente, aglomeraram-se alunos e funcionários da escola para ver o corpo de Georges, foi mais uma vítima da intolerância que viraria estatística.
A escola decretou três dias de luto pelo ocorrido, a imprensa local noticiou a tragédia e as desculpas foram empurradas goela abaixo da população sem ser tomada nenhuma providência por parte do poder público maior e da própria escola para dar fim ou amenizar o Bullying.
Depois de três dias, a escola voltou ao seu funcionamento normal, os agressores ainda assustados, porém, a rotina havia de continuar.
Eram, ao todo, um grupo de oito agressores: Ângelo, James, Anthony, Charles, Cristian, José Carlos, Marco Antonio e Juarez. Todos pertenciam a famílias locais bem estruturadas no sentido econômico, muito mais que o pai de Georges, migrante que tentava ganhar a vida e acabou perdendo o filho para a violência.
Nos dias que se seguiram, a escola voltava à normalidade, porém dona Crisanete precisou ser afastada da biblioteca para tratamento, não retornando mais ao trabalho e, assim, foi aposentada.
Passaram-se dois meses e, então, na biblioteca, começaram a acontecer algumas coisas estranhas, eram janelas que abriam e fechavam sozinhas, livros que caíam das estantes, ventos que abriam e fechavam livros e algumas inscrições avulsas nas páginas de alguns livros, todos os que Georges havia lido.
Os alunos começaram a ficar receosos em ir a biblioteca diariamente, até mesmo quando os professores pediam pesquisas.
Em uma manhã de segunda feira e o professor de geografia pediu para que fizessem grupos de até dez alunos e ir até a biblioteca pesquisar sobre as florestas do polo norte.
Como ninguém mais suportava fazer pesquisar ou estar perto daqueles jovens, o grupo fora formado pelos oitos e lá foram eles para a biblioteca.
Ao pegar o livro de geografia que Georges costumava ler, Ângelo, que era o mais velho da turma, com dezesseis anos, começou a rir com o que leu na contracapa: “vingança, eu vou te pegar”.
- Olha aí, galera, o que aquele otário escreveu antes de se matar?
Então, caíram na gargalhada!
Como não havia mais ninguém fixo tomando conta da biblioteca, foi remanejada, por motivo de saúde, a professora Augusta, para manter o controle do setor.
Ela, então, disse aos meninos que ia sair para tomar um café e já voltava. Encostou a porta e saiu.
Depois da algazarra pela morte de Georges, todos sentaram e começaram a fazer a leitura do que foi pedido. Foi, então, que Charles notou as letras do título do livro se derretendo. Fechou os olhos e pensou ser apenas uma miragem, não havia se alimentado direito naquela manhã. Quando abriu os olhos, estava escrito: “Achava que fugiria de mim, covarde”?
Charles deu um grito que assustou todos os colegas e mostrou a página do livro. Todos riram, nada estava fora de ordem.
- Tá com medinho daquele otário, Charles? - falou Marco Antonio.
Recomeçaram a leitura.
Um livro de biologia despencou repentinamente no chão, as janelas começaram a ranger fechando e abrindo fortemente.
Assustados, os garotos ficaram olhando aquilo acontecer sem reação ou confiante na coragem um do outro.
Uma inscrição com tinta vermelha começou a aparecer na parede branca que não tinha estante, apenas a fotografia do governador do Estado.
"Vocês achavam que se livrariam de mim?" Apareceu escrito na parede.
Os oito começaram a se assustar de verdade, mas não conseguiam nem falar.
Marco Antonio tentou correr em direção à porta, porém sua tentativa foi em vão. Uma forte corrente de vento bateu a porta e trancou à chave, estavam presos ali. Em última tentativa, tentaram sair pelas janelas, que também travaram.
Uma voz rouca e um sorriso debochante penetravam os ouvidos dos oito rapazes. "Hahahahahaha, então vocês pensavam que seria assim tão fácil livrar-se de mim?"
Anthony tomou coragem e com a voz trêmula perguntou:
- O que você quer de nós?
A resposta não veio de imediato.
Passado alguns segundos uma névoa branca desceu de cima para baixo na parede e em seguida apareceram uns versos em letras de cor vemelha que diziam:
Aqui se faz, aqui se paga
Nosso inferno somos nós
O que plantamos colhemos
Não há héroi ou algoz.
Entre o que é vizível
E o mundo que não vemos
Existem muitos mistérios
Uns suaves, outros horrendos.
O ódio cega o homen
Deixa bobo e atordoado
Perdão não consigo dar
No ódio estou acorrentado.
A rima da minha História
Fez crescer ódio em vocês
Portanto vou responder
A pergunta que me fez.
Nada mais eu quero agora
Já perdi a esperança
No "animal" ser humano
O que quero é só V-I-N-G-A-N-Ç-A!
A névoa branca desceu novamente e os versos como num passe de mágica desapareceram. O grupo de jovens com tanto medo não conseguiam balbuciar uma única palavra, muito menos articular uma frase.
Trêmulos, os meninos só conseguiam gritar e chorar, mas, lá fora, ninguém os ouvia.
Uma faísca de fogo acendeu-se nas páginas do livro de geografia e começou a crescer. Os jovens tentavam desesperados apagar o fogo, mas, quanto mais batiam, mais outros livros incendiavam, como se fossem um barril de pólvora.
Em minutos, a biblioteca estava totalmente tomada pelo fogo e, quando o corpo de bombeiros chegou, nada mais restava ali, apenas cinzas de livros e corpos carbonizados, com exceção do livro de geografia que Georges costumava ler e, no final dele, estava escrito com tinta vermelha, talvez sangue, “NEM TODO FINAL É FELIZ, MAS TUDO TEM FINAL”!
Tema: Crítica social