JEREMIAS E A PULGA (Parte II)
Por JOEL MARINHO
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Os dias se passaram depois daquele episódio em que Jeremias chegara em casa com sua cadela Rubi e aquele barulho colocou uma pulga sem tamanho atrás de suas orelhas. A vida continuou como sempre foi, porém aquela desconfiança continuou a existir.
Cerca de um mês depois Jesuíla começou a sentir algo estranho, era diferente de tudo o que havia sentido na vida. Primeiro foi a suspensão de suas regras mensais, segundo um crescimento espontâneo de sua barriga. Ela aos 33 anos nem esperança tinha de ainda ter uma criança e nem sabia como era a sensação de uma gravidez. Mas enfim, estava grávida mesmo
A gravidez trouxe ao mesmo tempo uma enorme alegria ao casal, mas também uma certa preocupação devido a idade de Jesuíla por conta da distância de onde moravam para a cidade, entre outros fatores que uma gravidez acarreta em uma mulher acima de trinta anos de idade.
Assim foi passando o tempo, Jesuíla começou a ir de vez em quando na cidade fazer o acompanhamento da gravidez. A animação do casal era muito grande, afinal era tudo o que eles mais desejavam, um filho ou uma filha. Ele queria que fosse homem para acompanha-lo a roça, já ela queria que fosse mulher para lhe fazer companhia em casa.
A barriga foi crescendo e o amor também, os dois faziam planos, cada qual na sua visão, ele já pensava em como criar “João Victor” e ela como criar “Jéssica”. As discussões eram acirradas entre eles, mas sempre com muito amor, carinho e atenção.
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Enfim chegou o dia e devido as condições de risco eles decidiram ir para a cidade, era muito arriscado tanto para o bebê quanto para Jesuíla ter a criança apenas com os cuidados de uma parteira, mesmo que esta fosse bastante experiente e tivesse feito o parto de todas as crianças nascida ali no raio de 30 quilômetros, entretanto, o casal achou melhor não arriscar.
As contrações começaram, as primeiras tentativas de parto normal foram frustradas, não havia passagem para o bebê, logo o médico solicitou que levasse a paciente para a sala de cesárea.
Depois de algum tempo de agonia no corredor do hospital surgiu uma assistente social sorrindo para Jeremias.
- Senhor Jeremias, parabéns pelo lindo filho, seja bem-vindo ao mundo dos pais!
Os olhos de Jeremias brilharam, era um menino e iria se chamar João Victor. Fez logo um monte de planos de como ensinaria seu filho a caçar, pescar, fazer o roçado, etc.
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Tudo era novidade ao casal, cuidar de uma criança como pais não é uma tarefa fácil, principalmente quando se é pai ou mãe de primeira viagem, mas aos poucos foram aprendendo e tocando a vida.
Nos primeiros dias Jeremias olhava aquela criança por horas em seus braços no intuito de identificar qualquer que fosse um traço seu, uma minúscula característica possível, mas era impossível, não havia absolutamente nada seu naquela criança. Se acostumava na ideia de que quando a criança crescesse puxasse seus traços de personalidade, assim o tempo foi passando e a criança crescendo normalmente como qualquer outra criança, normal.
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Aos dez anos Jeremias começou levar João Victor para a roça, porém começou a perceber que a criança não se interessava em nada por seu dia a dia, não gostava da roça, não se interessava em caçar, pescar ou qualquer coisa que fazia parte da vida de seu pai. Ao contrário, só queria saber de tudo que era da cidade. Quando seus pais diziam ir para a cidade fazer compras ele abria um sorriso imenso sabendo que ia também.
Desde cedo o menino se interessou por alguns livros velhos que o casal mantinha em casa mesmo que suas leituras fossem quase inexistente.
O menino começou a dizer que queria estudar e toda vez que ia a cidade ficava fascinado com aquelas crianças indo e vindo fardados de suas respectivas escolas. Chegou o momento que Jeremias mesmo contra a vontade colocou seu filho para aprender as primeiras letras em uma escolinha que era mantido pela comunidade onde as crianças eram alfabetizadas e assim aos dez anos João Victor já sabia ler e escrever muito melhor do que seus pais.
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João Victor completava 12 anos de idade e seus pais resolveram pela primeira vez fazer uma festa de aniversário, para isso cevaram alguns perus, porcos, galinhas, entre outros animais. Para completar aquela comilança Jeremias comprou um boi médio e convidou toda a comunidade ali perto.
Como era de se esperar muita gente compareceu naquele evento, afinal festas por aquela região era algo bastante difícil, ainda mais com comida de graça.
Naquele momento a cadela Rubi ainda era viva, porém já estava velhinha demais, cega e sem muitos movimentos, já tinha passado da hora de morrer para uma cachorra.
As pessoas chegando e se colocando em seus lugares, a música rolando e muita comida sendo servida.
Foi feito uma espécie de fogão no chão, um imenso braseiro onde as pessoas pegavam seus churrascos e assavam cada um a sua maneira.
Rubi estava deitada em um canto do terreiro quando chegou um grupo de pessoas que havia sido convidado da cidade, eram cinco mulheres e três homens conhecidos do casal.
Quando se aproximaram de Rubi ela levantou as orelhas e num gesto de quem estava reconhecendo pelo cheiro correu ensandecida para cima daquele grupo de pessoas procurando alguém em específico. Seria aquela “visagem” de doze anos atrás na janela de Jeremias?
Em meio a confusão e já desorientada pela cegueira Rubi correu na direção do grupo sem atingir alguém em especial. Em meio a sua fúria Rubi deu duas voltas em seu próprio corpo e caiu em convulsão, morreu de um ataque cardíaco fulminante na frente Jeremias que assistia àquela cena incrédulo que sua fiel companheira de roça havia morrido. Na hora da agonia nem prestou a atenção em qual direção Rubi havia corrido.
Passado a dor da perda de sua cadela, Jeremias passou a analisar a cena e a pulga da orelha que havia ficado para trás já alguns anos renasce com toda força.
Seria apenas uma desconfiança sem nexo ou alguém daquele grupo teria se tornado inimigo mortal de Rubi?
Ah, talvez seria apenas uma desconfiança besta, porém havia sempre uma possibilidade de que Jesuíla havia lhe traído e o fruto de sua traição seria o filho.
Afinal, como teriam vivido tanto tempo sem gerar filhos? Como depois daquele episódio e da gravidez de Jesuíla nunca mais geraram filhos?
- E assim Jeremias foi dormir depois daquela festa inesquecível de aniversário de João Victor não apenas com uma pulga, mas com um “pulgueiro” inteiro atrás das orelhas.
Aos quinze anos João Victor resolveu ir embora para a cidade estudar e viver numa espécie de comunidade estudantil onde seguiu carreira de advogado mais tarde e nem de longe puxou as características de seu pai com relação ao trabalho pesado na roça, assim como em nenhuma aparência física.
Os dois continuaram em sua casa sendo visitados pelo filho de vez em quando que tinha uma folga do intenso trabalho na cidade.
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Dizem as más línguas que todas as vezes quando alguém conversa com Jeremias sobre aquele episódio da festa ele sempre desconversa e se havia ali algum resquício de verdade não deu tempo de Rubi revelar e assim levou o provável segredo para sempre ao paraíso dos cachorros.
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