Joel Marinho
Entre letras e versos
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O JULGAMENTO DE BEATRICE PELA SANTA INQUISIÇÃO E O CORPORATIVISMO

POR JOELMARINHO

Era o dia 15 de julho de 1452, aos arredores de Florença a jovem Beatrice fora acusada pela própria prima Giordana por ter cometido bruxaria. O velho padre Lorenzo responsável pela paróquia a qual as primas participavam das missas acionou o corpo investigativo da Santa Inquisição para dar início ao processo de condenação ou absolvição da menina.

Beatrice foi submetida a um longo interrogatório de cerca de cinco horas e respondeu a cada pergunta sem vacilar intrigando os seus interrogadores, cinco no total.

Não tendo nenhum êxito com as perguntas os inquisidores partiram para medidas mais drásticas. Arrancaram as roupas de Beatrice e a colocaram sentada sobre o Despertador ou Berço de Judas. (O Berço de Judas era uma máquina de tortura do período da Santa Inquisição que consistia em uma espécie de cavalete tendo como acento uma prancha de madeira triangular onde a mulher era sentada nua de perna aberta e com pesos nos pés. O peso puxando para baixo pressionava as partes íntimas causando uma dor infernal. Por meio dessa e de outras tantas máquinas de torturas da Santa Inquisição muitas pessoas confessavam coisas que nem sabiam o que era, ou seja, muitas eram condenadas pelo medo da dor que a tortura causava).

Durante cerca de duas horas a moça aguentou sem reclamar ou esboçar choro, mesmo que tivesse pesos de um quilo em cada lado dos pés.

Percebendo que não havia sucesso eles aumentaram para cinco quilos em cada pé. Em alguns minutos Beatrice começou a reclamar e logo as reclamações se transformaram em choro incontido pela dor que estava sentido.

Um dos inquisidores, o mais velho o perguntou:

- Como que você se relacionava com o bode preto, bruxa?

- Eu não sei do que está falando, senhor!

- Fala a verdade, sua vadia, assim talvez Deus tenha pena da sua alma e possa ir para o purgatório.

- Pelo amor de Deus, eu não sei do que vocês estão falando, eu não conheço nada disso, eu sou inocente, em nome de Jesus e Nossa Senhora!

- Não usa o nome de Jesus e Nossa Senhora em vão, sua vadia!

As palavras da menina não traziam nenhuma comoção aos cinco inquisidores que a acusavam sem parar, quando um parava de falar o outro começava. Além da dor física era bombardeada psicologicamente por perguntas as quais ela nem imaginava o que era.

Com voz exaltada um dos inquisidores gritou:

- Apenas confessa e acaba com esse teu sofrimento, filha do demônio!

Não aguentando mais de tanta dor e já sentindo o sangue escorrer de sua virilha Beatrice pediu clemência e gritou:

- Eu confesso, eu confesso que fiz bruxaria e fiz essa tal de orgia com o demônio.

Os inquisidores se entreolharam com um sorriso sarcástico como que se deliciando com o sofrimento de Beatrice.

Retirada do castigo ela foi levada de volta para a prisão e jogada na cela fria.

A dor do corpo era imensa, suas partes intimas estavam dilaceradas pela violência a qual foi submetida, mas a dor maior era mesmo a da alma. Ela se perguntava em voz baixa para não ser ouvida:

- Por que, Deus? Por que isso comigo? O que eu fiz para merecer tanto castigo? Qual o meu pecado? Logo eu que sempre procurei andar sobre seus preceitos seguindo tudo aquilo ensinado pelo padre Lorenzo.

Por falar em padre Lorenzo ele estava naquele momento em sua casa localizada nos fundos da paróquia tomando o seu vinho e comemorando a prisão de Beatrice.

Por outro lado, dona Violetta, mãe de Beatrice estava desesperada com a prisão da filha, não lhe permitiam ao menos visitá-la. A vontade de ir até a igreja e matar Lorenzo era tanta que o corpo todo tremia, no entanto, sabia como seria tratada caso dissesse a verdade, afinal era apenas uma mulher e a palavra da mulher era nada diante a tamanhas autoridades e autoritarismos. Sua ira era maior porque sentia-se culpada por aquela prisão injusta.

Giordana já havia passado mais cedo na igreja e pegara as duas moedas de ouro dada por Lorenzo e ainda feito uma promessa jurada com a mão direita sobre a Bíblia Sagrada que jamais falaria a ninguém que tinha sido ela a denunciante da prima.

Os dias se passaram e com uma semana veio a sentença dos inquisidores à Beatrice, morte na fogueira por profanar o nome de Deus e praticar feitiçaria.

Violetta ficou aterrorizada com tamanha crueldade.

Entregue pela igreja ao estado, Beatrice ouviu sua sentença e a data de sua execução. Já não entrou mais em choque, entregara a Deus a sua vida, ela acreditava que em outra provável vida seria melhor. Já não questionava mais a divindade mesmo sabendo de sua inocência e pureza.

Enfim chegou o grande dia!

Posta sobre um monte enorme de lenhas, mãos amarradas na enorme estaca fincada no meio da praça, Beatrice não esboçava nenhum medo ou qualquer outra forma de sentimento, seu rosto estava sereno e pleno.

O padre Lorenzo se aproximou com a velha Bíblia nas mãos escrita em Latim e a fez repetir algumas palavras como: “me arrependo do que eu fiz e entrego a minha alma a Deus para que Ele em sua grandiosa bondade me perdoe e lembre de mim algum dia”.

A praça foi tomada por centenas de pessoas, de um lado havia quem estivesse do lado da condenação, do outro lado havia quem acreditasse na inocência de Beatrice.

A fogueira foi acesa e só se ouvira um grito da menina em suas últimas palavras:

- Senhor, perdoe-me por qualquer atitude errada que eu por acaso tomei.

O fogo subiu e em pouco tempo a jovem Beatrice de apenas 15 anos de idade fora consumido totalmente pelas chamas que lamberam seu corpo como se acariciassem um anjo inocente. Em pouco tempo o povo se dispersou e as ultimas chamas se apagaram sobrando apenas as cinzas para serem recolhidas no dia seguinte pelas pessoas que limpavam as ruas de Florença.

O dia amanheceu aparentemente tranquilo com relação ao dia anterior, era domingo e o sino da igreja já anunciava a missa quando de repente ouviram-se gritos vindo da casa de Violetta, uma vizinha sua o encontrara enforcada, ela havia se matado.

A notícia se espalhou e por ela ter morrido daquela maneira ninguém podia se aproximar sob o risco de ser condenado ao inferno, apenas quem trabalhava enterrando as pessoas poderiam pegar naquele corpo “amaldiçoado”.

Em uma das mãos fechadas de Violetta aparecia a ponta de um papel que aguçou a curiosidade de um dos coveiros. Violetta era uma das poucas mulheres dali que aprendera ler e escrever.

Ele abriu a mão dela com dificuldade e para a surpresa era um bilhete que dizia: “quem matou Beatrice foi o pai dela, quando o ameacei que iria contar a ela a identidade do seu verdadeiro pai, como forma de punição ele armou todo esse teatro. Não imaginava que ele teria coragem de fazer tamanha barbaridade. Não suporto mais viver sem minha filha e por isso tiro aqui a minha vida, se é que posso chamar ainda isso de vida. O pai de Beatrice é o padre Lorenzo. Há quinze anos atrás quando trabalhei na igreja com ele, exatamente quando eu tinha quinze anos de idade fui abusada e desse abuso engravidei, carreguei durante todos esses anos o peso disso e quando ameacei contar a verdade para a Beatrice falei a ele, então resolveu criar todo esse teatro pra matar minha menina. Nada mais me resta a não ser a morte e pouco importa se irei ou não para o céu, talvez o inferno seja bem mais ameno que conviver próximo a esse monstro maldito”.

Em pouco tempo a notícia se espalhou e a polícia foi até a igreja prender o padre Lorenzo.

Diante a seus pares foi a julgamento, mas como a única prova que tinha era uma carta escrita por uma mulher que havia se matado ele foi absolvido e transferido para outra paróquia distante daquela.

Passado alguns dias daqueles acontecimentos Giordana apareceu morta com sinais de estrangulamento e o crime jamais foi solucionado.

Lorenzo continuou exercendo a sua famigerada profissão, rezando missas e fazendo vítimas mulheres que jamais tiveram a coragem de o denunciar, pois sabiam exatamente quais seriam seus fins caso fizesse tal acusação. Além de padre ele tinha toda uma rede de padres que faziam vistas grossas para seus inúmeros crimes. Era o infeliz corporativismo encobrindo os crimes cometidos por membros da igreja.

 

Joel Marinho
Enviado por Joel Marinho em 18/11/2021
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