Joel Marinho

Entre letras e versos

Textos

MORTE MACABRA E O GRANDE SEGREDO 

POR JOEL MARINHO

A VILA DE IRACEMA MIRIM

A chuva forte caía como se fosse o dilúvio bíblico, em meia hora parecia que tudo iria ser arrastado e as pessoas da pequena vila de Iracema Mirim já se preparavam para o pior, no entanto, aos poucos foram diminuindo os pingos d`água e o sol que havia sumido por alguns instante por completo reaparece tímido já no cair da tarde dando um ar de alegria e esperança a vila de pescadores e colonos distante a duas horas da maior cidade da região.

O sino da igreja anunciava que em poucas horas o dia daria espaço à noite quando todos se recolhiam às suas humildes casas.

No dia seguinte o sol deu as caras anunciando um novo dia cheio de alegrias e muito trabalho àquele povo já acostumados com as labutas do dia a dia, mas o que parecia ser de paz e tranquilidade foi cortado por um grito de desespero vindo de uma casa situada ao fundo numa espécie de “oficina” onde os pescadores se reuniam para remendar suas redes furadas por peixes ou desgastada pelo constante uso.

Aos gritos dona Norma pedia socorro quando entrou na casa de Maria Aparecida, mulher solteira de vinte e oito anos que morava ali sozinha e prestava “serviços sexuais” aos homens solteiros e alguns casados da vila, assim conseguiu atrair a atenção de muitas mulheres que o acusavam de levar seus maridos a cometerem atos libidinosos com ela,

Dona Norma era uma das poucas mulheres da vila que fizera amizade com Cida, como era conhecida desde pequena antes de ir morar em Iracema Mirim. Por isso dona Norma, uma mulher já com idade de cinquenta anos que há quase dez anos ficara viúva também era alvo de conversas maldosas e desprezo por grande parte das mulheres dali coisa que ela ignorava e assim levava a sua pacata vida em determinada paz.

Como a vila era pequena logo todos ficaram sabendo do ocorrido.

Sem estrutura nenhuma havia uma pequena cadeia com duas celas apenas e dois representantes da lei, um cabo que fazia ao mesmo tempo papel de delegado e um soldado que de tanto não fazer nada e comer muito já estava muito acima do peso, mas como em Iracema Mirim nada de mais acontecia a utilidade deles era quase nula, pela primeira vez fariam um trabalho de fato desde que foram deslocados para “cuidar” da vila. Chegaram logo ao local e trataram de fazer os procedimentos necessários para manter intacta a cena do crime.

Padre Antero, um senhor de sessenta anos também foi chamado e como sua igreja ficava a cerca de cem metros da casa de Cida em poucos minutos já estava lá fazendo suas rezas e encomendando a alma da mulher ao Senhor. Disse umas palavras em latim e fez um sinal da cruz dizendo:

- Que Deus tenha pena de tua ama, pobre pecadora!

 

 

A PERÍCIA

Depois de algum tempo a perícia chegou ao local juntamente com o delegado responsável pela investigação e começaram os procedimentos interrogando dona Norma, a primeira pessoa que chegara à cena do crime e consequentemente a primeira provável suspeita. Depois de cerca de meia hora ela foi liberada e saiu da sala chorando muito.

 

A CENA

Deitada na cama, braços abertos e totalmente nua, um punhal cravado no peito esquerdo, tendo o peito direito e as partes íntimas arrancadas e não se encontravam no local dando um ar sinistro de sadismo por quem havia praticado aquele crime. Ao lado do cadáver um litro de vodca pela metade e um copo abaixo do meio com uma mistura da mesma bebida tingida de vermelho levando os peritos a uma prévia conclusão de que era sangue da vítima.

Dos seios até o umbigo havia rasgos em forma de letras feitas por um objeto perfurante, provavelmente a arma do crime, o punhal com os dizeres: “morre sua puta safada filha de Belzebu, tua alma vai queimar no inferno”.

Em forma de cruz foram colocadas quatro velas, uma próxima aos pés, outra próxima a cabeça e duas próximas a cada lado dos braços e todas quatro ainda acesas. A Bíblia que ela tinha em casa como “proteção” estava perfurada e suja de sangue em uma banquinha provavelmente utilizada como criado mudo. Encontrava-se aberta em 1 Coríntios 6:9 que diz: “Não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus”?

Aparentemente nada havia sumido da casa, descartando a possibilidade de latrocínio. Nenhum arrombamento foi encontrado, logo provavelmente a pessoa responsável por aquela atrocidade tinha livre acesso ou foi convidada pela vítima a entrar em seus aposentos de prazeres.

Em conversa com os moradores o perito e investigador colheu a informação que Cida não fazia os prazeres só de homens, havia também algumas mulheres, inclusive casadas o visitando quando seus maridos estavam pescando em alto mar.

Janu, mulher do pescador Lourival era uma das mulheres que mais implicava com Cida porque desconfiava que seu marido andava se divertindo também com a moça, logo foi convocada para prestar depoimento no dia seguinte na cadeia pública de Iracema Grande, cidade onde havia fórum e onde todos os crimes da região eram jugados, isso porque na semana anterior ela havia aprontado um grande “barraco” na casa de Cida e na ocasião prometera tirar-lhe a vida, arrancar seu órgão sexual e dar de presente ao seu cão.

No depoimento do dia seguinte o delegado responsável pela investigação descobriu que o punhal utilizado no crime era de Lourival, porém ele foi logo descartado de ser o autor devido estar na noite do crime pescando. Sem uma explicação contundente e diante do contexto ocorrido anteriormente o delegado logo pediu a prisão preventiva de Janu mesmo ela jurando total inocência.

Sem ter condições de contratar um advogado foi indicado a Janu um defensor público muito jovem, aliás, era o primeiro grande caso dele, já havia feito algumas defesas, porém sem nenhuma expressão, coisa simples de marido que bateu e apanhou de sua esposa, esse era o primeiro e grande caso de sua carreira. Seu nome era Afonso, um rapaz de 26 anos simpático, educado e da fala mansa.

Buscou todas as informações possíveis, porém era difícil para Janu e ao próprio advogado explicar o punhal de Lourival na cena do crime e principal objeto responsável por tirar a vida de Cida.

Já havia passado meses do ocorrido, na verdade já ia completando quase um ano, o delegado Rico, responsável pela investigação já havia interrogado quase todos os adultos da vila e os únicos indícios só levavam a Janu, mesmo sendo a vítima odiada por pelo menos dois terços das mulheres que ali viviam e também por alguns homens os quais ela mesmo sendo paga se recusou a ficar com eles.

 

O GRANDE JULGAMENTO

Durante todo aquele tempo a casa de Cida havia sido preservada pelos dois policiais da vila a mando da justiça, visto ela não ter ali nenhum parente, informações essas que a moça jamais deu a ninguém, era uma mulher muito misteriosa.

Afonso junto a justiça conseguiu o direito de investigar minuciosamente a casa, mas sempre na presença de um dos policiais responsáveis.

Em uma gaveta da pequena saleta da casa ele encontrou um pequeno pote de vidro com uns papeis dentro, então pediu permissão para ficar com aquele objeto, visto não ser nada de valor, logo obteve a permissão judicial.

O julgamento estava marcado para as nove horas da manhã e o juiz Sandoval Torres era um homem que cumpria seus horários com a maestria de um inglês, às oito e quarenta e cinco já estava sentado em sua cadeira aguardando a hora da ré chegar de sua cela.

Era de fato um dos maiores acontecimentos da história daquela cidade. Quase todos os adultos da vila Iracema Mirim estavam lá para assistir ao julgamento e a condenação daquela assassina fria e calculista.

O responsável pela acusação era o promotor José de Ribamar Siveira, um senhor de 65 anos e já com um histórico longo, jamais perdera um caso e aquele para ele seria apenas mais um o qual ganharia com enorme facilidade, sem nenhuma surpresa.

As nove em ponto o juiz levantou e pediu silêncio no tribunal, a ré já estava sentada no seu lugar reservado. Os juramentos de dizer a verdade e somente a verdade foram feitos e os trabalhos começaram.

A apreensão era nítida no rosto de todos os presentes da vila, inclusive do padre Antero que havia sido convidado para confessar a ré caso fosse condenada, mas nenhuma apreensão era maior que a do coitado do Lourival diante a possibilidade de sua esposa pegar 30 anos de prisão e da dona Norma que só queria ver a justiça sendo feita. Naquela ocasião todos já sabiam que sua amizade ia além de uma simples amizade com a vítima.

Com a arma do crime nas mãos o promotor foi diante dos jurados e começou a sua explanação de forma contundente:

- Pasmem vocês para frieza da ré, a senhora Janu, não se contentou apenas em dar uma lição na vítima, a dopou de álcool, amarrou a cama, arrancou seu seio e sua parte intima para dar ao seu cão, cravou-lhe este punhal no coração e ainda deixou escrito coisas terríveis no corpo da vítima. Além de uma assassina que precisa ser retirada de sociedade é uma perversa sádica, por favor, condenem essa senhora ou novas vítimas irão ser mortas com a mesma crueldade e quem sabe a vítima dessa vez pode ser eu, vocês ou um parente de vocês, pensem nisso.

Janu não suportando aquela pressão gritou em súplica chorando:

- Pelo amor de Deus, eu sou inocente!

Logo foi interrompida pelo juiz pedindo silêncio no tribunal e que só poderia falar quando fosse interrogada.

O julgamento durou horas e Afonso apenas debatia algumas teses sem ter muito o que fazer. Depois de nove horas o tribunal entrou em recesso para ter continuidade na manhã seguinte. Ele então pediu meia hora a sós com sua cliente antes dela ser levada a cela para ter algumas informações, queria saber quem estava presente no dia em que aprontou o “barraco” na casa da Cida e com todos com quem falou depois daquele episódio até a morte da moça.

Afonso passou a noite escrevendo e buscando alguma informação que levasse a um “milagre”, a absolvição de sua cliente. Pensava ele, ou ela é inocente ou de fato é uma grande atriz.

Seu cérebro naquela noite deu um nó. Eram três horas da manhã e sono era a única coisa que ele não tinha. Foi levantar-se para tomar mais um café e sem querer sua mão tocou direto naquele pote encontrado por ele na casa de Cida dias atrás, a queda foi inevitável e os estilhaços de vidro se espalharam pelo chão. Os papéis contidos ali dentro também se espalharam então resolveu ler aqueles bilhetes. Depois de todos lidos juntou-os em sua pasta e foi tentar dormir, porém sem nenhum sucesso, viu o resto das horas da noite passar e o dia amanhecer.

 

A CONDENAÇÃO

Na manhã seguinte quem chegou primeiro ao Tribunal foi Afonso, quando o juiz chegou as oito e quarenta e cinco ele já estava lá. As nove em ponto recomeçou o julgamento. Testemunhas foram confrontadas e o promotor deu um show de direito, de como se ganha uma causa.

Humildemente Afonso pegou sua pasta no momento de sua fala e foi para o seu lugar de defesa e assim começou seu discurso;

- Eu sei que todos aqui querem a verdade e a condenação da pessoa que fez essa atrocidade, sim, eu também quero e por isso estou aqui porque acredito na verdade. Sei também que para a maioria de vocês a minha cliente é a culpada, eu também acreditava na culpa dela e por algumas vezes pensei em abandonar o caso, por isso eu peço desculpas a ela, mas podem condená-la, eu também no lugar de vocês o condenaria, afinal a arma que estava no local do crime era do esposo dela e ela mesma havia prometido que mataria a vítima, porém quero alertá-los, vocês condenarão a pessoa errada e eu tenho plena certeza disso.

Por hora é isso!

O promotor se levantou e pediu a fala e logo foi concebida pelo juiz.

- Senhoras e senhores, essa manobra não se sustentará aqui, o nobre colega está fazendo a sua cliente de vítima quando na verdade ela é a maior culpada de tudo isso, o que é pior, ele fala isso sem provas nenhuma. Cadê as provas, nobre colega? Sem mais!

O juiz então interpelou Afonso:

- O senhor tem alguma prova?

- Não exatamente, meritíssimo, mas posso convocar alguém que não foi convocado como testemunha?

- Protesto, meritíssimo, falou o promotor José de Ribamar!

O juiz parou por uns segundos e disse:

- Convocação permitida.

- Quem você quer convocar?

- O padre Antero, meritíssimo.

Todos tomaram um susto naquele momento, inclusive o juiz, mas como havia permitido convocou o padre para o interrogatório que não entendeu nada. Mesmo assim fez o juramento.

Afonso então pegou o punhal do crime, foi até o padre Antero e perguntou:

- O senhor conhece esse punhal, padre?

- Nunca havia visto, vi pela primeira vez aqui no tribunal.

- Nem quando visitou a minha cliente um dia antes da fatídica noite?

- Não! Mas onde você quer chegar?

- Em lugar nenhum, padre, mas é muito suspeito quando você é desprezado por uma mulher e se aproveita da fala de outra pessoa em momento de raiva para fazer uma armação dessa.

- Olha, o senhor me respeita, sou padre e não tenho nada a ver com isso!

- O senhor é padre na sua paróquia, aqui por enquanto está apenas respondendo algumas perguntas então o porquê de tanto estresse?

- O senhor está falando heresias, não tem nenhuma prova!

- Meritíssimo, posso ler as cartas do padre a vítima?

- Permissão concedida!

Afonso então passou a ler todas as cartas do padre diante as recusas de Cida e as ameaças feitas por ele a ela as quais a moça passou a guardar todas naquele potinho de vidro.

Diante àquela leitura o velho padre tentou correr, mas logo tropeçou em sua batina e caiu, em seguida o juiz deu voz de prisão.

Partiu uma diligência em busca de mais informações na capela onde morava padre Antero e lá foram encontradas as duas partes que faltava naquele corpo desfalecido, ele guardava como forma de satisfazer seus torpes desejos que só foi descoberto graças ela ter guardado aquelas cartas impróprias que ele escrevia.

Com novas provas e a confissão do padre diante os fatos Janu foi libertada da prisão e passou a ter mais cuidado com o que falava e a quem falava. Um novo padre fora designado pela igreja, porém não foi mais aceito e logo o expulsaram da vila, além disso meteram fogo na capela e nunca mais aceitaram nenhum membro eclesiástico em Iracema Mirim.

Padre Antero foi julgado e condenado a 130 aos de cadeia, entretanto, dois anos após a prisão morreu de pneumonia e seu corpo foi cremado devido ao medo das autoridades de uma revolta generalizada da população caso ele fosse enterrado no cemitério público.

Afonso tornou-se bastante conhecido a partir daquele caso e das artimanhas usadas para desvendar aquilo que seria o grande segredo da história da vila Iracema Mirim.

 

 

Joel Marinho
Enviado por Joel Marinho em 03/01/2022
Alterado em 03/01/2022


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